Jurema das Matas


A visão estreita do mundo ainda faz com que os olhos do homem permaneçam fechados, mesmo quando a luz da verdade desponta diante dele, quase a ofuscar-lhe a mente nebulosa.

Pouco se sabe a respeito das entidades que se dispõem a trabalhar nos círculos espirituais da Umbanda.  Muitas histórias são ouvidas, algumas envoltas em mistérios e superstição.  O preconceito e a ignorância ainda pairam sobre esses seres, em sua maioria abnegados instrutores dotados de inteligência extrema e imensurável amor pela humanidade.

Jurema das Matas é assim.  Com inigualável simplicidade e franqueza, desvenda quatro de suas encarnações, na tentativa de mostrar como o ser humano se ilude com falsos valores de conquista e poder.  Da trajetória sangrenta e sofrida, surge uma criatura dócil e infinitamente sábia, disposta a compensar seus desequilíbrios com o auxílio desinteressado aos irmãos de caminhada que formam a família humana.

É uma lição para todos nós, acostumados a eleger favoritos em função da vestimenta sutil com que se apresentam no mundo da matéria.  A escolha do espírito que anima esta história foi a da humildade para, através do exemplo, reafirmar em nós a crença de que somos e seremos sempre iguais.

15 - Jurema das Matas

 

Editora Vida & Consciência

Lançado em 2012

Ordem de lançamento: 15º

 364 páginas

 

Que tal experimentar o começo do livro?

Capítulo 1

Chovia torrencialmente quando Alejandro Velásquez deixou a taverna, ainda sentindo na mente os efeitos estonteantes do rum e da mulher que o inebriara na cama. Foi caminhando, cambaleante, tentando se recordar do local em que havia deixado o cavalo. Como a memória lhe falhava, sacudiu os ombros e cuspiu no chão, tomando o caminho da rua à direita, e seguiu chutando as poças e espargindo água por todo lado.

Era madrugada, e não havia ninguém na rua. Um cão encharcado se aproximou, e Alejandro lhe teria dado um pontapé, não fosse o bichinho mais rápido e fugisse assustado, alertado pelo instinto de que não estava diante de uma pessoa amiga.

– Idiota – rosnou ele, tentando se equilibrar e seguir avante.

Quando chegou à casa, o dia estava prestes a raiar, e ele abriu a porta com estrondo, atirando-se na primeira poltrona que viu pela frente. Ali mesmo adormeceu, até que foi despertado algumas horas depois pelo murmurinho da criada, ocupada em limpar a sala enquanto cantarolava uma cantiga da moda.

– Pare com esse barulho infernal! – esbravejou ele, assustando a moça, que deixou cair a bandeja de prata que segurava nas mãos.

– Senhor! – redarguiu ela, cabeça baixa e voz humilde. – Não sabia que estava aí.

Ele não respondeu. Levantou-se, coçando o queixo, e passou por ela sonolento, não sem antes lhe beliscar as nádegas e dar uma gargalhada irônica. Apesar da contrariedade, a moça nada fez e se encolheu para lhe dar passagem.

– Onde está minha mulher? – perguntou ele, ainda sustentando no canto da boca aquele sorriso maroto.

– Está dormindo.

Alejandro não disse nada e saiu. No quarto, a esposa dormia placidamente, e ele parou para fitá-la por uns instantes. Era linda e lhe pertencia, por mais que ela não gostasse disso. Com gestos bruscos e desajeitados, sentou-se na cama ao lado dela e alisou os seus cabelos. Rosa abriu os olhos contrariada e fixou-os no marido, esforçando-se para conter o repúdio e não o mandar embora.

– Não o vi chegar – foi o que conseguiu dizer em sua mal disfarçada repulsa.

– Não quis acordá-la, minha querida. Você dormia feito um anjo dos céus.

Rosa sabia que era mentira, que ele havia passado a noite fora na companhia de mulheres de reputação duvidosa e da bebida farta, porém, não disse nada. Tinha vontade de xingá-lo e depois fugir correndo dali, mas não podia. O pai a forçara àquele casamento sem amor em troca de um nome que lhe salvasse a honra.

Parecia que fora há muito tempo que se apaixonara por um artesão de sapatos, dono de uma oficina próxima à casa em que viviam, ainda na Espanha. De uma hora para outra, Rosa dera para fazer constantes visitas ao artesão, encomendando-lhe mais sapatos do que tinha ocasiões para usar. O pai, desconfiado, acompanhou-a em uma dessas visitas e logo percebeu um brilho diferente na troca de olhares entre os dois. Até então, julgava tratar-se de uma paixão inocente e platônica, mas, ainda assim, proibiu a filha de ver o rapaz.

Auxiliada por uma criada, Rosa passou a receber o moço em seu quarto todas as noites. O pai, a princípio, julgou que a obediente Rosa houvesse se esquecido do artesão. Contudo, com o passar dos dias, notou que ela vivia com o olhar sonhador, sorrindo sem motivo e prestando pouca atenção aos jovens que a cortejavam.

Foi quando o pai descobriu tudo. Furioso, teria matado o rapaz, mas este, mais rápido, fugiu espavorido pela sacada e nunca mais foi visto. A tristeza de Rosa só não foi maior do que o desgosto do pai, que viu, de uma hora para outra, sua reputação esvair-se nos lençóis manchados do pecado da filha. Ele já estava decidido a mandá-la para um convento quando conheceu Alejandro.

Acontecera na taverna de sempre. Alejandro, abraçado à Giselle, a proprietária, sua amiga e, por vezes, amante, falava com os companheiros sobre um lugar chamado Castilla de Oro , colônia da Espanha nas recém-descobertas terras de além-mar, para onde pretendia ir assim que surgisse uma oportunidade. A novidade chamou a atenção do pai de Rosa e, em poucos minutos, estava negociado o casamento da moça. Alejandro lhe daria um nome em troca de dinheiro para a viagem e as primeiras despesas.

Na véspera do casamento marcado às pressas, Alejandro repartia com Giselle a excitação que o dominava ante a perspectiva da viagem.

– Acho que o que você está fazendo é uma loucura! Deixar o mundo civilizado por uma terra de selvagens? Francamente!

– É lá que está o ouro, Giselle. Vou voltar rico!

– Conversa! Aposto como não tem nada lá além de mato e mosquitos. Sem falar nos índios que comem gente. Você vai se arrepender.

Ele se movimentou na cama e a abraçou:

– Por que não vem comigo? Podia ser minha amante.

– Deus me livre! Já tenho amantes suficientes aqui mesmo na Espanha. E depois, não nasci para essa vida de aventuras. Além do mais – ela aproximou a boca dos lábios dele e sussurrou baixinho –, estou apaixonada. De verdade.

– Sei. Por aquele velhote?

– Aquele velhote tem sido muito bom para mim, mas não, não estou apaixonada por ele. Conheci um homem de verdade.

Alejandro suspirou e ficou olhando-a. Gostava de Giselle. Eles eram amigos de longa data e, por vezes, dividiam a mesma cama. Giselle, no entanto, não era mulher de se prender a ninguém e estava envolvida com gente importante.

– Você é quem sabe – lamentou ele. – Mas vou sentir a sua falta.

– Eu também – ela se desvencilhou dele e foi apanhar a taça de vinho. – No fundo, você é como eu, Alejandro: livre e ambicioso.

– Estamos ambos em busca de uma vida de luxos. Não estou certo?

– Exatamente – concordou ela, levantando a taça em um brinde solitário.

Ele soltou novo suspiro e acrescentou em tom nostálgico:

– Reluto em deixá-la, mas já é hora de partir. Caso-me amanhã e, no outro dia, parto com minha doce esposa para Castilla de Oro.

– Sua doce esposa já experimentou o fel da desgraça – desdenhou ela. – Não vai ser fácil manter sob as rédeas uma mulher assim.

– Olhe só quem fala! Até parece que você é alguma exemplo de doçura.

– É por isso mesmo que estou lhe avisando. Uma mulher conhece a outra. Sua Rosa é uma mulher experiente e apaixonada por outro homem. Aceitou esse casamento por imposição paterna. Ou você acredita mesmo que ela se apaixonou por você?

– Sei que não. Digamos que foi uma troca de interesses. Dinheiro por honra. É um preço justo.

– E a fidelidade? Faz parte do negócio?

– Você está certa de que ela vai me trair, não está?

– Ela não o ama e, na primeira oportunidade, vai cair nos braços de outro.

– Pois lhe garanto que isso não vai acontecer. Se Rosa é uma mulher fogosa, eu mesmo posso lhe oferecer o fogo de que necessita. E ela vai se dobrar a mim. Estarei sempre de olho nela.

– Bem, espero que se lembre do que lhe falei e não se surpreenda quando a encontrar na cama de outro.

– Lamento decepcioná-la, mas sei dobrar uma mulher. Rosa me será fiel, você vai ver.

– Infelizmente, meu caro, não verei. Você parte para o desconhecido, e eu terminarei meus dias aqui, no sossego de Sevilha.

– Escreverei para você e contarei o quanto Rosa é dedicada a mim. Só para deixá-la morta de inveja. Duvido que o seu padreco seja fiel a você.

– Ele não me interessa mais como homem. Já disse que estou apaixonada por outro, e sua fidelidade é inquestionável. É louco por mim.

– Será? Que homem é fiel se não está morto?

Ela atirou a taça em cima dele, errando o alvo, e riu gostosamente. Alejandro puxou-a para junto de si e beijou-a, deitando-se sobre ela na cama. Aquela seria a última vez que faria amor com Giselle e na Espanha. Pensar nisso causou-lhe um certo arrepio. Será que nunca mais tornaria a ver a amante nem sua terra natal?

E foi assim que Rosa se viu forçada àquele casamento arranjado às pressas, com um homem a quem repudiava e em companhia de quem foi enviada para o exílio. Em Castilla de Oro, a vida não transcorreu conforme o esperado. O sonho de riqueza se perdeu na ausência de ouro, e a vida permanecia estagnada na monotonia. Naquela terra estranha e sem muitas possibilidades, não havia ocupação para homens feito Alejandro, que acabou por obter permissão para se mudar para Cuba, junto com mais uma centena de espanhóis. Sem escolha, Rosa partiu com ele.

Tudo isso agora era passado. A vida em Cuba se revelara bem mais agitada, o que não serviu para diminuir a aversão de Rosa por Alejandro. Ele era um homem rude e mau educado, bebia em excesso e fazia sexo como um animal. Quase não lhe dirigia a palavra, a não ser para mandar e exigir obediência.

Assim, foi com a usual repugnância que Rosa o sentiu aproximar-se, espargindo sobre ela aquele hálito repulsivo de bebida e suor. Rosa puxou o lençol alvo sobre a camisola de linho e virou o rosto, enojada, enquanto Alejandro a puxava pelo queixo para um beijo. No auge da repugnância, avistou um pequenino pedaço de pergaminho sobre o aparador da lareira, dando graças aos céus pela salvação.

– Chegou uma mensagem para você – conseguiu articular.

– Que mensagem?

Com um aceno de cabeça, Rosa indicou o pergaminho, e Alejandro a soltou com um suspiro. Apanhou-o e rompeu o lacre. Desdobrou-o, e seus olhos foram percorrendo a escrita desenhada até chegar ao fim. Ele leu e releu a mensagem umas três vezes, e Rosa ficou olhando-o, ansiosa para que ele lhe dissesse do que se tratava.

– Alguma coisa importante? – perguntou ela, tentando aparentar gentileza.

– Um convite. Para uma viagem.

– Viagem? Para onde?

– Outras ilhas – Rosa levou a mão ao peito e conteve um suspiro. – A mando de Bernal Diaz de Castilho .

– Por quê?

– Parece que o governador acatou nosso pedido. Vamos partir em busca de índios.

Rosa não disse nada mas, em seu íntimo, exultava. Que Alejandro fosse mandado para longe era o que ela mais queria.

No dia seguinte, ele atendeu ao chamado de Bernal e ficou sabendo que uma expedição seria montada, sob o comando de Francisco Hernández de Córdova , a fim de capturar índios para o trabalho nas fazendas e na mineração. Seria a sua chance de adquirir escravos e estabelecer-se como fazendeiro.

No caminho de volta para casa, ouviu uma voz familiar atrás de si. Ao se voltar, avistou Lúcio, seu amigo desde o dia em que chegara a Cuba, e foi ao seu encontro.

– Lúcio, meu amigo! – alegrou-se. – Há quanto tempo!

Lúcio estendeu a mão para ele e a apertou sorrindo, ao mesmo tempo em que dizia:

– Soube que vocês conseguiram a expedição. Era o que você queria, não era?

– Há muito tempo. Já não aguento mais essa falta de ação e aventura. E vou precisar de escravos se quiser realmente me transformar em fazendeiro. O dinheiro que meu sogro envia é suficiente para comprar a fazenda mas, sem escravos, é quase impossível.

– É verdade. E não há muitos disponíveis, há?

– Quem tem não quer vender. Eu também não venderia.

– Quem vai liderar a expedição?

– Um fidalgo chamado Francisco Hernández de Córdova.

– Já ouvi falar. Dizem que é muito rico e possui um povoado de índios aqui mesmo, em Cuba.

– Pois é esse homem que será o nosso capitão.

– Espero que a missão seja bem sucedida. E que os índios não sejam selvagens.

– Não há selvageria que resista ao estrondo de um mosquete. Vamos domá-los, você vai ver.

– Pena que não poderei acompanhá-los. Tenho assuntos urgentes a tratar por aqui.

– É mesmo uma pena. Gostaria que pudéssemos ter uma aventura juntos.

– Oportunidades não hão de faltar, meu amigo.

– Já que vai ficar, poderia me prestar um grande favor?

– É claro! O que pedir.

Alejandro se aproximou ainda mais de Lúcio e falou baixinho:

– Você se lembra da história que lhe contei de Rosa, não lembra? – Lúcio assentiu. – Isso me deixa preocupado.

– Por quê?

– Rosa já era uma mulher experiente quando me casei com ela. Nunca se importou com reputação, ou honra, ou castidade.

– Você descobriu alguma coisa sobre ela? – horrorizou-se o amigo.

– Não é isso. Tenho certeza de que ela é fiel, mas porque eu estou aqui para satisfazê-la. Agora eu pergunto: o que fará uma mulher fogosa feito ela sem um marido para esquentar-lhe a cama?

– Você está exagerando. Rosa não me parece esse tipo de mulher.

– Ela nunca ficou sozinha. Sempre estive de olho nela. É melhor não facilitar.

– E você quer que eu tome conta dela?

– Na minha ausência, sim. Seria um grande favor, de amigo para amigo.

– Está certo – concordou Lúcio com um suspiro. – Acho desnecessário, mas, se você insiste…

– Eu insisto. Sei que é um pedido um tanto fora do comum, mas só posso confiar em você.

– Fique tranquilo. Rosa estará bem guardada.

– Obrigado, amigo. Ah! e não deixe que ela perceba ou, mais tarde, se voltará contra mim.

– Não se preocupe. Ela não perceberá que a estou vigiando.

A conversa estava quase terminada quando um homem se aproximou. Era jovem e musculoso, e cumprimentou Lúcio como se já o conhecesse de muito tempo.

– Quero apresentá-lo a meu sobrinho, recém-chegado da Espanha – falou Lúcio para Alejandro, segurando no ombro do rapaz. – Este é Soriano e vai viajar com você.

– Muito prazer, Soriano. E seja bem-vindo. Espero que possamos ser amigos.

– Bem, aí vai então uma troca de favores – tornou Lúcio. – Já que vou tomar conta de Rosa para você, será que se importaria de dar uma olhada em Soriano para mim? O rapaz é jovem e inexperiente.

Alejandro deu uma olhada em Soriano e revidou sorrindo:

– Com tantos músculos, talvez seja melhor ele tomar conta de mim.

– Nada me daria maior prazer, senhor – falou o rapaz, com voz servil.

– Soriano é forte, mas não tem experiência – explicou Lúcio. – E meu irmão não me perdoaria se algo lhe acontecesse. É seu único filho varão.

– Deixe-o por minha conta – garantiu Alejandro. – Prometo defendê-lo com a minha vida e sei que você defenderá, com a sua, a minha honra de marido.

– Considero um privilégio servir ao seu lado, senhor – acrescentou Soriano, em tom embevecido. – Ouvi muito a respeito de sua intrepidez e ousadia.

– Não conte comigo para sua ama-seca, rapaz. Estarei a seu lado para ajudá-lo a se transformar em homem. Sabe manejar uma espada?– Sei, senhor. Mas reconheço que ainda tenho muito que aprender.

– Ótimo. Com sorte, estaremos a bordo do mesmo navio e poderemos praticar um pouco.

– E depois, capturar muitos índios – finalizou Soriano, com ar arrebatado e sonhador.

Quando os três se despediram, havia um clima de forte expectativa no ar. Alejandro não estava acostumado a tomar conta de ninguém além de si mesmo, mas tinha que manter a palavra dada a Lúcio. Precisava que o amigo vigiasse Rosa, e o favor bem que valeria o sacrifício. Ademais, Soriano era um rapaz simpático, e poderia ser divertido tê-lo por companhia. Bastava esforçar-se para mantê-lo vivo, o que não deveria ser difícil, já que os índios que iam capturar deviam ser dóceis e amistosos.

Ao menos, era o que ele esperava.

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