Ninguém deve nada a ninguém, a não ser a si mesmo.
Na Espanha, no tempo da Inquisição, quando o poder da Igreja era quase absoluto, um inquisidor, em sua luta para obter mais poder, e a pretexto de “salvar as almas do pecado”, pratica toda sorte de crimes. Sua amante, uma linda e ambiciosa mulher, une-se a ele, urdindo ciladas para as pessoas a quem ele deseja condenar.
Assim ela tornou-se cúmplice dos crimes que o amante praticava. Encontrou, porém, um homem que despertou nela um grande amor, inspirando-a a mudar de vida.
Haveria tempo para ela fazer isso ou seria tarde demais?
Você encontrará a resposta na emocionante história de Giselle – a amante do inquisidor.
Lançado em 2007
Relançado em 2013
Ordem de lançamento: 8º
371 páginas
Que tal experimentar o começo do livro?
Prólogo
À medida que a chuva desabava pesada e grossa, Giselle subia a colina verdejante e escorregadia, parando por vezes para enxugar as pequeninas e abundantes gotas de suor, misturadas aos pingos da chuva que desciam pelo seu rosto cansado. O vento soprava insistente e veloz, fazendo com que o corpo de Giselle envergasse para trás, dificultando-lhe a caminhada. Ao longe, trovões ribombavam furiosos, acompanhando os raios que faiscavam no céu tempestuoso. Efetivamente, Giselle estava no meio de uma tormenta e não tinha certeza se conseguiria seguir adiante.
Em dado momento, parou e olhou para baixo, espantada com o tanto que já havia subido, sem nem se dar conta. Suas pernas começavam a doer, talvez em função do sofrimento que lhes fora impingido, e uma forte exaustão começou a tomar conta de todo o seu corpo. Só agora seus músculos e ossos se ressentiam de tudo por que já haviam passado.
Mas não podia desistir. Não agora. Diego lhe dissera que aquele era o caminho. Do outro lado da colina, o mar lhe acenaria com a liberdade. Abaixou a cabeça, contendo as lágrimas, e avançou mais um pouco. Não faltava muito agora, e tinha que prosseguir. Já perdera muito em sua vida, mas precisava viver. Devia isso a Ramon, que morrera para não ter que matá-la.
Parou por instantes, olhos enevoados pelo pranto e pela chuva, e tornou a subir. Sentia-se só e desamparada. Mais até do que quando estivera presa. Ramon estava morto, e ela não podia mais contar com Esteban. Ele a abandonara. O homem que fora o primeiro amante em sua vida, e a quem chegara a amar como pai, virara-lhe as costas covardemente. Ou será que tinha algo a ver com tudo aquilo? Teria sido Esteban quem a delatara e depois, por medo e covardia, não ousara mais encará-la? Não sabia ao certo. Por diversas vezes Esteban a alertara de que, se ela fosse presa, nada poderia fazer para salvá-la. Não. Ele não a traíra. Acovardara-se, temendo manchar seu nome e sua reputação. Mas não acreditava que houvesse sido ele o autor daquela denúncia infame.
Finalmente, alcançou o topo da colina e ficou estarrecida com a visão do outro lado. Era uma encosta íngreme e rochosa, nada parecida com a grama verdejante por onde acabara de subir. Ao fundo, um imenso mar de águas revoltas se chocava contra as pedras, jogando a espuma branca a muitos metros de distância. A maré ia e vinha numa cadência aterradora, como se quisesse sugar todos os grãos de areia, as pedrinhas e as conchas que, inutilmente, lutavam para se agarrar nas pedras incrustadas no chão arenoso.
Por alguns momentos, Giselle ficou parada no alto da colina, paralisada ante aquela visão. Como é que Diego pretendia que ela entrasse naquele mar? O tempo não a estava ajudando e havia encapelado o mar de tal forma que seria praticamente suicídio aventurar-se por aquelas ondas. As vagas eram gigantescas e se chocavam com violência contra as pedras, arrastando qualquer coisa que se insinuasse por ali.
Durante alguns minutos, permaneceu estudando o local. As ondas não conseguiam chegar até o pé do rochedo, perdendo força poucos centímetros antes. Mas seria uma travessia arriscada até a ponta do promontório, onde Diego lhe dissera que haveria um barco à sua espera. Giselle teria que conter o medo ante as gigantescas muralhas de água que as ondas formariam bem diante de seus olhos.
Inspirou profundamente, tomando coragem, e pôs-se a descer, quase que rastejando pelas rochas. Ao menos, parara de chover. Apesar de íngreme, a descida não era tão difícil como pensara, pois havia uma espécie de trilha natural marcando o caminho por onde deveria passar. Em poucos instantes, alcançou a praia. Não era propriamente uma praia, mas uma estreita faixa de terreno arenoso e, mais à esquerda, as pedras que separavam a terra do mar. Subindo por elas, chegava-se a um caminho apertado e pedregoso, ladeando o penhasco e protegido pelas rochas à frente, que terminava num cabo largo e alto, fazendo como uma plataforma adentrando o mar. Se conseguisse chegar ao final da montanha, teria que dar um jeito de subir pelas pedras e se abrigar na plataforma, onde então ficaria à espera do barco que a iria resgatar.
De um lado e de outro, imensas paredes de pedra, com uma espécie de gruta mais ao fundo. Aquilo mais parecia uma garganta. Giselle ficou pensando que seria muito fácil armar-se uma emboscada ali e começou a sentir medo. Por que é que Diego a enviara para um lugar tão perigoso? Não teria sido mais fácil marcar o encontro numa praia mais afastada? Mas ele dissera que não, que seria arriscado. Miguez então já teria descoberto a fuga e teria colocado todos os soldados em seu encalço. E depois, como é que ele poderia prever aquela tempestade?
Mesmo assim, algo não lhe soou bem. Olhando para a ponta do cabo, ficou pensando que barco conseguiria chegar até ali com aquele tempo. O mar estava muito revolto, era mesmo uma ressaca impiedosa. Que embarcação se atreveria a se aproximar das pedras com aquelas ondas, arriscando-se a ser atirada contra as rochas e naufragar?
Apurou os ouvidos, tentando escutar algum som. Nada. Não ouvia nada, a não ser o barulho do vento e das ondas estourando com violência nas pedras. Começou a ficar nervosa, pensando no que deveria fazer. Subitamente, a ponta de um barco surgiu por detrás do morro, e Giselle suspirou aliviada. Era um barco pequeno, e ela imaginou que a nau que a levaria embora deveria estar ancorada um pouco mais além, fora da influência daquela maré traiçoeira. Não sabia como faria para alcançar o barquinho, mas imaginou que alguém deveria lhe jogar uma corda ou algo parecido, puxando-a para bordo antes que as vagas a atirassem contra as rochas do cabo. De qualquer forma, teria que saltar no mar.
Não teve tempo de pensar em muita coisa. Enchendo-se de coragem, deu dois passos em direção às pedras. Ia começar a subir quando ouviu um crek do outro lado. Olhou na direção daquele ruído e estacou abismada. Do fundo escuro da gruta, dezenas de homens apareceram, apontando para ela suas espadas ameaçadoras.
Giselle não teve dúvida. Agarrou-se às pedras o mais que pôde e começou a subir, rezando para chegar ao barco antes que os soldados a alcançassem. Quando ergueu os olhos, outra surpresa. Ao invés do barco se aproximar do promontório, começou a se afastar em direção ao alto-mar, e foi então que ela compreendeu tudo. Diego a traíra. Esperara até que ela lhe revelasse onde escondera seu tesouro, facilitara-lhe a fuga e a entregara a Miguez.
Ficou desesperada. Não havia para onde fugir. Pensou em voltar pelo mesmo lugar por onde viera, mas não havia tempo. Os homens se aproximavam cada vez mais e conseguiriam facilmente detê-la naquela subida íngreme. Não tinha escolha. Ou ia avante, ou seria capturada e morta.
Começou a subir pelas pedras, em direção à parede do penhasco, rumo à ponta do cabo. Quem sabe não poderia atirar-se ao mar e nadar até o outro lado da montanha? Não sabia o que encontraria lá, mas deveria haver uma praia ou uma baía. Quando atingiu o caminho que circundava o morro, ergueu o corpo e levantou os olhos mais uma vez. Sentiu medo. Tanto medo que pensou que fosse desmaiar. Vistas de baixo, as ondas pareciam ainda maiores e engoliam as pedras com uma fúria sem igual, respingando o caminho por onde ela teria que passar. Se fosse apanhada por uma onda, ser-lhe-ia impossível escapar.
Mesmo apavorada, seguiu em frente. Era sua única saída. Os homens de Miguez também já começavam a subir nas pedras e logo a alcançariam. Uma onda estourou a poucos centímetros, e o repuxo quase a arrastou, mas ela conseguiu se sustentar e correr. Giselle deu um passo trôpego para junto da parede de pedras, colando o corpo a ela e experimentando nas pernas a friagem da água. Coração aos pulos, sentiu na pele a iminência da morte.
Os soldados pareciam temerosos e recuaram, hesitando em seguir avante. Era loucura demais. Estacaram onde estavam e ficaram apenas olhando, como se esperassem que algo acontecesse e a levasse de volta para eles. Sem lhes prestar mais atenção, Giselle, corpo ainda colado nas pedras frias do penhasco, foi se arrastando lentamente, sentindo as pernas tremerem com o estrondo das vagas diante de seus olhos.
Já ultrapassara a metade do caminho quando ouviu um novo alvoroço. Olhou novamente para a praia e notou que os homens haviam recuado e que outros se aproximavam. Giselle percebeu que eram arqueiros. Iam atirar nela! Com o corpo trêmulo, começou a chorar e continuou se arrastando, tentando não encarar as ondas que se agigantavam diante de seus olhos, avançando cada vez mais por cima das pedras à frente, que agora começavam a declinar para dentro da água cinzenta.
A primeira flecha passou zunindo pelo seu ouvido e quase a acertou, mas foi desviada a tempo pela ventania. Os arqueiros, porém, não se deram por vencidos. Armaram-se novamente e tornaram a atirar, mas as flechas não conseguiam alcançá-la, perdendo força ante o vento que soprava em direção contrária. Sua pele já estava ferida e sangrando, esfolada que fora pelas rochas pontiagudas do penhasco. Giselle parecia nem sentir a dor. Depois de tudo por que passara, até que aquilo não era tão mau. Apesar das feridas que trazia e do corpo dolorido, ainda conseguira juntar forças para fugir e chegar até ali. Não iria desistir agora.
Cada vez mais se afastava dos homens. As flechas não a atingiam, e Giselle pensou mesmo que estivesse fora de seu alcance. De repente, cessaram por completo. Os arqueiros pareciam haver desistido e aguardavam em posição de ataque. Mas alguém não desistira. Giselle já o havia visto uma vez, há muito tempo, quando ele a fora buscar para ir à masmorra ver Manuela. Era homem da confiança de Esteban, estava certa. Aquilo a encheu de tristeza. Então, aqueles soldados estavam ali, não a mando de Miguez, como a princípio pensara, mas do próprio Esteban.
O soldado olhou para onde Giselle estava, estudando rapidamente o local, e soltou a armadura e a espada no chão. Começou a subir pelas pedras, com habilidade e destreza, esgueirando-se com cuidado e evitando o encontro com as ondas, logo chegando à encosta por onde ela se arrastava. Sem nem olhar para o mar, encostou-se à parede e começou a se arrastar também. Giselle se apavorou. Estava claro que ele a alcançaria em pouco tempo, antes mesmo que ela pudesse atingir a ponta do promontório e subir na plataforma. Tentou andar mais rápido, mas as ondas a detinham. Elas pareciam estourar cada vez mais perto agora, e não foram poucas as vezes em que tivera que parar para não ser atingida pela sua fúria incontida.
Quase no final, estacou novamente. As pedras adiante, que protegiam a pequenina trilha encostada na montanha, praticamente desapareciam sob a água, e as ondas ganhavam força, chocando-se contra o promontório com mais violência. Se conseguisse ultrapassar esse ponto, poderia começar a subir para a plataforma, de onde se atiraria no mar. Seria preciso esperar o repuxo e atravessar depressa. Giselle parou. As ondas espocavam com furor, arrastando tudo, e ela voltou a tremer. Sentia o perigo bem abaixo de seus pés e se deu conta de que não havia nada que a sustentasse se caísse.
Ela olhava do homem para as pedras, enquanto ele ia se aproximando cada vez mais. Começou a se desesperar. As vagas não davam trégua, estourando uma atrás da outra, e o intervalo entre elas não era suficiente para que atravessasse. Seria atingida em cheio e arrastada antes que pudesse começar a subir para a plataforma.
Foi quando o homem chegou mais perto. Tão perto que seus dedos roçaram nos dela, e Giselle não teve mais dúvidas. Ou atravessava, ou ele a agarrava. De qualquer forma, iria morrer. Tomou uma decisão. Esperou até que a última onda explodisse contra a rocha e recuasse, e avançou rapidamente. Mas não tão rápido que não pudesse evitar o choque com a nova onda que estourou em seguida à primeira, tão grande que logo a encobriu.
Apesar de atirada contra a parede com força descomunal, Giselle ainda teve forças para se segurar nas pedras. Mas o repuxo foi tão violento que ela não conseguiu manter-se agarrada e sentiu-se arrancada do chão e envolvida pela espuma branca e gelada da onda. Subitamente, seu corpo todo estremeceu, como se ela estivesse sendo embrulhada e sacudida por imensa massa cinza. Estendeu os braços para a frente e sentiu que não alcançava nada além da parede líquida e cinzenta que a ia tragando. Sentiu-se arrastada e esticou ao máximo a ponta dos pés, tentando tocar algo sólido. Em poucos instantes, viu-se coberta pelo mar, sendo arrastada cada vez mais fundo. Seu corpo, apanhado pela correnteza, era agora levado para longe.
Não teve tempo de chorar. Já havia engolido muita água e começou a sentir que sufocava. Não lutava mais. Era inútil. Seu corpo continuava sendo arrastado pela correnteza, e ela sabia que o fim era inevitável. Tentou não abrir a boca, para não engolir água. Em dado momento, sentindo-se asfixiar, inspirou profundamente pelo nariz e sentiu a corrente de água invadindo os seus pulmões, ao mesmo tempo em que fragmentos de sua vida lhe vieram à mente em questão de segundos.
A última coisa em que pôde pensar foi na solidão. Nunca antes, em toda a sua vida, Giselle havia se sentido tão só. Deixou-se dominar por profunda tristeza, vendo-se na iminência da morte, sozinha no fundo do oceano, sem ninguém com quem compartilhar a sua dor. As testemunhas silenciosas de seu suplício jamais poderiam atestar a dor daquele momento. Giselle sentiu-se morrer em completa solidão, o corpo livre e solto no mar, distante de tudo o que um dia representara a sua vida.
Com um movimento mecânico, parou onde estava e ficou olhando seu corpo sendo arrastado para o fundo do oceano. Como é que aquilo podia estar acontecendo? Não havia morrido? Morrera. Giselle não sabia explicar, mas estava quase certa de que havia morrido. Seu corpo, provavelmente, se fora, e o que permanecia ali era tão somente o seu espírito. Desgrudara-se da matéria, e ela continuava boiando na água, ainda imersa, confusa demais para entender o que estava acontecendo. Será que ainda respirava?
Aterrada, balançou a cabeça de um lado para outro e percebeu que ainda continuava no fundo do mar. Corpo ou espírito, o fato é que não estava mais sendo arrastada. Teria tudo sido ilusão e ela ainda permanecia viva? Subitamente, sentiu que o ar lhe faltava. Estava viva! Os mortos não precisavam respirar. Então, não morrera. Desmaiara, talvez, mas estava viva. Viva…!
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