O que conta, verdadeiramente, para o espírito, é a forma como o ser humano se conduz diante da vida.
Quando a sociedade estabeleceu um modelo de normalidade, criou uma guerra antropológica com a natureza humana.
A diversidade natural é real e em torno dela age a funcionalidade da ecologia, que trabalha em favor do progresso de todos.
Cada um de nós é único, com um temperamento original relativo às necessidades essenciais do progresso pessoal e coletivo. Quem resolve seguir o modelo se ilude bloqueando a expressão de sua alma, criando insegurança, doença, desilusão e sofrimento.
Os iludidos dão mais importância às aparências do que à verdade, que prioriza os valores eternos do espírito.
Servos do mundo, sofrem o mundo.
Em razão disso, quem assume sua verdade e age de acordo com os valores da Vida, mesmo enfrentando o preconceito e pagando o preço de ser diferente, passa credibilidade, obtém respeito e se realiza.
Porém, os escravos do preconceito estão se candidatando no futuro a experimentar as mesmas experiências que criticaram, a fim de aprender a conviver com as diferenças.
Fraternidade é o resultado da capacidade de apreciar as diferenças.
Lançado em 2004
Ordem de lançamento: 5º
354 páginas
Que tal experimentar o começo do livro?
Capítulo 1
Estava fazendo um calor infernal quando as portas da escola pública em que Romero estudava se abriram. O menino saiu esbaforido, esfregando a testa e o pescoço para enxugar o suor. Andou por alguns metros, até que chegou ao ponto de ônibus, e parou. Do outro lado da rua, os colegas de turma passaram e apontaram para ele. Em seguida, pararam e cochicharam algo nos ouvidos uns dos outros, soltando risadas sarcásticas.
– Olha lá a bichinha! – cantarolou um deles, apontando o dedo para Romero e rindo feito um demônio.
Na mesma hora, Romero sentiu o rosto arder. Abraçou a pasta e desatou a correr, sob as risadas irônicas dos outros meninos, que continuavam a apontar para ele e a gritar:
– Lá vai a bichona!
– Pega, pega o veadinho!
– Ai, ai, boneca…
Romero correu tanto que nem sentiu que disparava a caminho de casa. Somente quando viu o portão de ferro do seu jardim foi que se deu conta de que havia chegado. Apoiou a mão no portão, tentando respirar e lutando para não chorar. Por que é que não o deixavam em paz? Por que viviam acusando-o de algo que não era?
– Veio a pé, Romero? – era a voz de Judite, que vinha chegando da faculdade. – O que foi que houve? Você está pálido.
Judite era a irmã querida, a única que parecia realmente se importar. Cinco anos mais velha, ingressara na faculdade de Letras e era linda de morrer. Romero correu para os seus braços e desatou a chorar. Era sempre assim. Os meninos da rua ou da escola viviam a implicar com ele, e era Judite quem sempre o defendia e consolava.
– O que foi que lhe fizeram? – prosseguiu ela, com ar bondoso. – Foram os garotos de novo? Debocharam de você?
– Ah! Judite, não sei por que fazem isso comigo. Não sou nada disso que eles dizem que sou!
– Sei que não, querido. E você não devia se importar.
– Mas eu me importo. Sabe o que papai vai dizer.
– Ele não vai dizer nada. Você não precisa contar.
– Mas ele tem um jeito de adivinhar as coisas…
Era verdade. O pai de Romero era inspetor na escola que ele freqüentava e trabalhava nos dois turnos para sustentar a família. Era muito honesto e muito correto, e gozava de prestígio frente ao diretor. Não havia nada que acontecesse na escola que não descobrisse. Tudo o que Romero fazia, ele ficava sabendo por intermédio desse outro.
– Você acha que alguém viu alguma coisa? – perguntou Judite.
– Não sei…
– Mas o que lhe fizeram dessa vez? Bateram em você? Xingaram?
– É. Eu estava no ponto, esperando a condução. Os meninos passaram e me chamaram de bichinha, de veado… Só porque não tenho namorada…
Romero fez um beicinho trêmulo e agarrou-se a Judite, que acariciou e beijou seus cabelos.
– Vamos entrar, Romero. Se papai chegar e brigar com você, direi que não foi culpa sua. E não foi mesmo. Que culpa tem se os garotos implicam com você?
– Você sabe que papai vive me cobrando coisas. Só porque não quis ir ao tal bordel, não quer dizer que não sou homem.
– É claro que não! Papai é um tolo. Pensa que sair por aí se deitando com qualquer vagabunda é sinal de masculinidade. Mas você não precisa ir, se não quiser. Não tem que provar nada a ninguém. Nem a ele. No dia em que conhecer uma garota legal, vai ver como as coisas mudam.
Romero silenciou. Achava muito difícil conhecer uma garota legal. Quer dizer, conhecer, conhecia muitas garotas legais. Mas nenhuma que o fizesse mudar. Mudar em quê? Ele era homem, disso não tinha dúvidas… Mas então, por que é que não se interessava pelas meninas? Judite lhe dizia que ele era muito novo e ainda não conhecera a garota certa. Mas como seria a garota certa? Loura? Morena? Alta? Baixa? Gorda? Magra? Ele não sabia. Só o que sabia era que algo dentro dele lhe dizia que jamais encontraria a garota certa, o que lhe causava imenso desgosto, um quase desespero. O que o pai faria se ele não namorasse ninguém?
Enquanto Romero se trocava, ouviu o bater das panelas na cozinha, e a voz da mãe se elevou, falando algo com Judite. Mesmo sem entender, Romero sabia que falavam dele. Judite, na certa, contara à mãe o que acontecera. A mãe era uma mulher muito bondosa, mas tinha medo do pai e não ousava contrariá-lo. Por mais que tentasse protegê-lo, não se atrevia a contestar as ordens do marido, e Romero, muitas vezes, apanhava sem que a mãe sequer levantasse os olhos.
Apenas Judite interferia. Ela era danada, a Judite. Meiga e decidida. Educada e atrevida. Carinhosa e corajosa. Quando crescesse, Romero queria ser como Judite. Ah! Se tivesse nascido menina, nada daquilo estaria acontecendo. Ele poderia ser ele mesmo, sem ter que corresponder às expectativas do pai. Romero era medroso e arredio, tímido e calado. Mas sabia ser generoso e sentia que o seu coração era um oceano de sentimentos. Era sensível, gostava de plantas e de animais. Adorava crianças e respeitava os idosos. Era um menino afável e extremamente educado, o que o pai interpretava como sinônimo de fragilidade. Um homem deve ser forte e destemido, era o que ele dizia. Deve ser viril, másculo e proteger as mulheres. Jamais se misturar a elas ou a suas bobagens.
Mas Romero adorava as bobagens femininas. Gostava de poesias, de apreciar a natureza, de escutar o canto dos pássaros. Amava ver a irmã se vestir para sair, passar batom, empoar o rosto, levantar o cabelo em um coque ou rabo-de-cavalo. Chorava com as fitas de cinema, emocionava-se até com novelas. Lia romances e mais romances, derretendo-se com os beijos e as carícias que os personagens trocavam.
Em tudo isso, Romero não conseguia vislumbrar nenhum problema ou defeito. Mas o pai se aborrecia e gritava com ele todas as vezes em que o flagrava admirando os vestidos da irmã ou lendo um romance água-com-açúcar. Pior ainda quando apanhava na rua ou chegava em casa choroso, magoado com as piadinhas que os colegas faziam. Ele não entendia. Não fazia nada para provocar tantos gracejos. Nem desmunhecava. Mas o fato era que todos duvidavam de sua masculinidade, e o pai ficava furioso quando ele voltava para casa fugido, após ter sido humilhado pelos outros garotos.
– Romero! Venha cá!
Romero voltou de seu devaneio e teve um sobressalto. Silas, o pai, acabara de chegar e, pelo tom de sua voz, estava claro que já ficara sabendo do ocorrido. Ele terminou de se trocar e foi para a sala, onde o pai caminhava de um lado para o outro.
– Mandou me chamar? – indagou com voz miúda.
O pai deu um salto sobre ele e agarrou sua orelha, puxando-a com violência e fazendo com que ele se sentasse no sofá.
– Seu maricas! – vociferou. – Quando vai aprender que não se deixa que brinquem com a honra de um homem?
– Eu não fiz nada… – murmurou, já sentindo o peito estrangular, uma vontade louca de chorar.
– Você, não! Mas aqueles cretinos daqueles garotos chamaram você de bichinha novamente!
Torceu sua orelha com mais força, e Romero choramingou sentido:
– Ai! Por favor, pai, não tive culpa. Foram eles que me xingaram…
– Porque você deixou. Devia ter reagido.
– O que eu poderia fazer?
– Sei lá, ter atirado uma pedra na cabeça deles, dado um murro no queixo, qualquer coisa.
– Eles estavam do outro lado da rua.
– Papai! – foi o grito de Judite, que correu para onde eles estavam. – Solte-o, pai. Não vê que o está machucando?
Embora contrariado, Silas o soltou, não sem antes ofendê-lo mais uma vez:
– Seu mariquinhas! Você só faz me envergonhar.
Saiu desabalado para a cozinha, onde a mãe, à beira do fogão, fungava com os olhos rasos d’água.
– Isso é culpa sua, Noêmia! – berrou para a mulher. – Quem manda criar o menino feito uma donzela?
– Não é verdade, Silas – contestou magoada. – Romero é um menino de ouro.
– Ele é um maricas! Os outros têm razão. Vive se escondendo, só quer saber de ficar grudado na barra da saia da irmã. E você estimula esse comportamento.
– Eu!?
– É, você. Você e Judite. Por isso ele nem tem namorada.
– Mas ele só tem treze anos!
– E o que é que tem isso? Na idade dele, eu já conhecia mulher.
– Você está exagerando. Romero é um menino. Gosta de jogar bola e soltar pipa…
– Se fosse assim, eu não estaria preocupado e nem me importaria com o futuro dele. Mas ele está mais para brincar de bonecas e casinha do que para soltar pipa.
– Você se preocupa demais. Romero é só uma criança. Nem tem idade para se interessar por mulheres. Mais tarde, vai ver como ele muda.
– Mais tarde? Que mais tarde o quê? Vou resolver isso é agora.
Voltou às pressas para a sala, onde Romero assistia televisão, agarrado à Judite. Silas desligou o aparelho e estacou em frente a eles. Dedo em riste, disparou:
– Escute, aqui, Romero, já perdi a paciência com você. Hoje, você vai aprender a ser homem.
– O que quer dizer com isso, pai? – interveio Judite.
– Não se meta, Judite, não é problema seu. O assunto agora é de homem para homem.
– Mas pai – lamentou-se Romero –, o que o senhor vai fazer comigo?
– Vou ensiná-lo a ser um homem de verdade. E ai de você se me decepcionar!
Saiu batendo a porta. Naquele dia, Romero quase não comeu. Vivia pensando nas palavras do pai. Embora ele não dissesse claramente, Romero estava certo de que pretendia levá-lo a alguma mulher. Essa idéia causou-lhe pânico. O que faria diante de um corpo nu de mulher? E se ela o despisse também? Na certa, morreria de vergonha e não conseguiria fazer nada com ela, o que deixaria o pai ainda mais furioso.
Tentou conversar com Judite, mas ela ajudava a mãe com as costuras. Noêmia, todas as tardes, costurava para fora, e era assim que a família conseguia equilibrar o orçamento doméstico, sem que Judite tivesse necessidade de trabalhar fora para ajudar.
– Mamãe? – começou a irmã, enquanto pregava botões numa blusa.
– Hum?
– Por que não faz nada?
– Fazer o quê?
– Por que não impede papai de levar Romero, você sabe onde?
Noêmia pousou a costura sobre os joelhos e olhou para Judite por cima dos óculos.
– Não há nada que eu possa fazer. Você conhece seu pai tão bem quanto eu e sabe como ele é teimoso. E depois, talvez seja bom para Romero. Vai acabar com essa agonia.
Judite fixou-a com ar pensativo e tornou com voz grave:
– E se Romero não gostar?
– Como assim, não gostar? Romero pode ser só um menino, mas é homem. Ele está assustado, mas vai acabar se acostumando.
– Eu não teria tanta certeza.
– O que está querendo dizer, Judite? Que seu irmão não gosta de mulher?
– Não é isso. Mas é que Romero me parece tão inseguro…
– Seu pai acha que já é hora de acabar com os medos e as inseguranças dele, e eu concordo.
Concordava nada. Judite sabia que ela estava mentindo. No fundo, morria de pena do filho, mas não tinha coragem de enfrentar o marido. E ela também não tinha como ajudar. Só lhe restava esperar e torcer para que Romero se saísse bem.
Quando o pai chegou para buscá-lo, já passava das nove horas. Naquele dia, não jantou em casa, e Romero imaginou que ele deveria ter ido a algum prostíbulo combinar tudo. Apesar de seu nervosismo, Silas não fez nenhum comentário. Limitou-se a abrir a porta do quarto e a dizer laconicamente:
– Venha.
Romero obedeceu. Em silêncio, ganharam a rua, caminhando em direção ao ponto de ônibus. Da calçada, Romero pôde ver o rosto da irmã pela janela, tentando lhe transmitir coragem.
– Boa sorte – foi o que leu em seus lábios.
Caminharam até o ponto sem trocar uma palavra. Entraram no ônibus, que rodou alguns minutos, até que desceram em frente ao seu destino. Era uma casinha toda pintada de branco, com janelas azuis e vasos de flores nos peitoris. Romero não conseguiu ocultar a surpresa. Esperava algo bem diferente daquilo. Mas o pai, sabendo de seus receios, escolheu uma moça já conhecida de seus tempos de solteiro, que trabalhava por conta própria. Ela cobrava caro, mas valeria a pena.
Silas bateu e esperou. Pouco depois, a porta se abriu, e uma mulher de seus trinta e poucos anos, vestida numa camisola vermelha transparente, rosto excessivamente pintado, veio abrir.
– Boa noite, Domitila – cumprimentou, com uma certa intimidade.
Ela deu um sorriso e chegou para o lado, dando passagem para que ambos pudessem entrar.
– Então, é esse o rapazinho?
– É sim. O menino está meio assustado, é a primeira vez, você sabe como é.
Ainda sorrindo, Domitila se aproximou e foi segurando-o pela mão, puxando-o para outro cômodo.
– Pode deixá-lo comigo, Silas. Volte em uma hora.
– Lembre-se – sussurrou ao ouvido de Romero –, não me decepcione.
Silas saiu e foi procurar um bar onde pudesse fazer hora até que Domitila terminasse com Romero. Do lado de dentro, o menino tremia. Nem sabia se a mulher era bonita ou feia, pois não ousava levantar o rosto. Estava envergonhado, com medo, inseguro. Ela se acercou dele e, sem dizer nada, começou a tocá-lo em suas partes íntimas. Assustado, tentou fugir, mas ela não lhe deu chance. Estava tão apavorado que quase urinou nas calças.
– Que… quero… ir ao ba… banheiro… – gaguejou.
Com o dedo, Domitila indicou-lhe onde ficava o banheiro, e ele correu para lá. Quando voltou, ela continuava no mesmo lugar em que a deixara, só que agora, completamente nua. Romero quis chorar, mas ela nem lhe deu tempo para isso. Aproximou-se novamente e fez nova investida, acariciando-o e beijando-o por toda parte. Romero queria fugir, mas não sabia para onde. E depois, havia o pai. Se ele o decepcionasse, nem queria pensar no que o pai faria. Era até capaz de lhe dar uma surra.
Mais por medo do que por desejo, Romero conseguiu fazer o que esperavam dele. Foi tudo muito rápido. Ao sentir que ele correspondia, Domitila deitou-se na cama e puxou-o para cima dela, guiando-o apressadamente. Em poucos segundos, estava tudo terminado.
– Pronto, meu bem – falou ela com fingido carinho, empurrando-o para o lado. – Já terminou. Pode sair de cima de mim.
Na mesma hora, Silas correu para o banheiro e vomitou. Sentia-se arrasado, violado em sua intimidade, invadido em seus brios. Com o pé, fechou a porta do banheiro e desatou a chorar, torcendo para que Domitila não fosse perguntar o que estava acontecendo. Mas ela parecia nem ligar. No fundo, julgara-o mesmo um maricas, mas não seria ela que iria questionar aquilo. Se Silas dizia que o menino era másculo, isso era lá com ele. Cumprira a sua parte e esperava receber o seu dinheiro.
Quando Silas voltou, encontrou-os sentados no sofá da sala, ele bebendo um refrigerante, e ela, uma cerveja. Como não tinham o que conversar, permaneceram bebericando, sem trocar palavra.
– E então? – perguntou ansioso. – Como é que foi? Correu tudo bem?
– Muito bem – respondeu Domitila, tentando parecer interessada. – O rapaz escondia o jogo. É um garanhão. Tive que implorar que parasse.
– Não me diga! – tornou Silas, todo orgulhoso, nem percebendo o ar de espanto do filho. – Eu não lhe falei? O que ele tinha era vergonha.
– É. Os quietinhos são os piores.
Silas pagou à Domitila e agarrou Romero pelo braço, saindo com ele em estado de quase euforia.
– Muito bem, meu filho – elogiou. – Sabia que você não iria me decepcionar.Garanhão, hein? Quem diria? Espere só até eu contar para o pessoal. Quero ver quem é que vai mexer com você depois disso. Vão todos morrer de inveja, isso sim.
Romero enrubesceu. Como poderia encarar alguém depois daquilo? Ainda mais se o pai contasse aos outros o que acontecera. O que faria para esconder a vergonha que sentia?
Silas não estava preocupado com os sentimentos de Romero. Estava tão feliz que sequer se lembrara de lhe perguntar se ele havia gostado ou como se sentira. A única coisa em que pensava era que seu filho, ao contrário do que diziam, não era nenhuma bicha.
Só que Romero, longe de compartilhar da alegria do pai, sentia-se frustrado e deprimido, desejando jamais ter que passar por aquilo novamente.