Os atos de desequilíbrio são gerados pela ignorância, e as consequências desastrosas derivam da culpa que essa ignorância traz.
Depois de dez anos de sucesso, apresentamos a edição revisada do primeiro romance de Mônica de Castro. Embora os fatos narrados tenham ocorrido no início do século vinte, esta é uma história atual e envolvente, em que as paixões se chocam em meio aos falsos padrões de comportamento e as aparências ditam as normas.
Pressionados e despreparados, os envolvidos reagem pensando que, mantendo as aparências, estarão livres da responsabilidade de suas atitudes.
Essa ilusão tem um preço muito alto, gerando dor e sofrimento, em um círculo vicioso que pode durar séculos. Entretanto, a vida, em sua magia espiritual, usa os recursos do tempo e da reencarnação para libertá-los, tornando-os conscientes dos verdadeiros e eternos valores do espírito, sem os quais ninguém conseguirá conquistar a felicidade.
Conheça a fascinante história de Rosali e se emocione. Esta é uma história de ontem…
Lançado em 2001
Relançado em 2011
Ordem de edição: 1º
408 páginas
Que tal experimentar o começo do livro?
Prólogo
Fazia frio, muito frio. Contra a vontade do vento, dobrou a esquina, tentando ocultar as faces no manto que, teimosamente, insistia em ceder passagem à neve que enregelava seus músculos. Silenciosamente adentrou o castelo, penetrando por uma passagem lateral, quase invisível por detrás dos arbustos de hera. Com passos rápidos e assustados, seguiu pelos corredores escuros, buscando trilhar os recantos mais isolados e secretos do castelo, evitando o encontro com pessoas indesejáveis.
Ante uma enorme porta de ferro, estacou e apurou os ouvidos. Silêncio. Vagarosamente, empurrou a pesada porta e passou para o aposento, do outro lado da parede, fechando-a em seguida para esconder a passagem secreta por detrás da imensa estante de livros. Caminhando cautelosamente, dirigiu-se a uma enorme mesa de cedro, parando em frente a um homem, jovem ainda, que, absorto na leitura, a princípio não percebeu sua entrada. Subitamente, movido mais pela intuição do que pela audição, ele largou a leitura e levantou os olhos negros para ela que, lívida, fitava-o cheia de admiração.
– O que está fazendo aqui? – perguntou. – Já não lhe disse que não viesse sem que eu a chamasse? Alguém a viu entrar?
Levantou-se apressado e foi em direção à porta, a fim de averiguar se alguém havia notado a presença dela. Mas, dado o adiantado da hora, todos já estavam dormindo, à exceção dele mesmo, entretido que estava na leitura.
– Não, meu senhor. Ninguém me viu entrar. A neve cai impiedosa, e ninguém se atreve a sair com um tempo destes.
– O que veio, então, fazer aqui?
– Pedir-lhe auxílio – disse enquanto afastava o manto, descobrindo o ventre, já bem avolumado. – Não posso mais continuar assim. Não tenho recursos, sequer roupas para vestir o pequeno. Que fazer? Você me prometeu ajuda, mas até agora nada fez por mim, por nós, por nosso filho.
O homem, bastante irritado, pôs-se a esbravejar, fazendo com que a moça se encolhesse e desatasse num choro carregado de ressentimento.
– Não pode tratar-me assim – queixou-se ela. – Nada fiz para merecer tamanho desprezo, senão amá-lo. Por você abandonei minha família, meu lar. Meu pai virou-me as costas, envergonhado por ver a filha desonrada, sem marido. Acusa-me de mundana, não quer me ver.
Receoso, o homem indagou, tentando aparentar um carinho que não possuía.
– Você disse a ele quem é o pai da criança?
– Não. Fiz como você me pediu e nada revelei a ninguém, embora ele desconfie de você… Francamente, não sei por quanto tempo poderei guardar este segredo – olhou para ele com uma certa malícia, deixando entrever que não estava disposta a suportar, sozinha, tão pesado fardo. – Até agora nada disse a ninguém. Contudo, se você não me auxilia, como farei para viver? Já disse que meu pai me voltou as costas, expulsou-me de casa.
O homem, certo de que aquela mulher, cedo ou tarde, acabaria por levar a todos o conhecimento da verdade, dissimulou a voz e retrucou:
– Quando você me conheceu, já sabia que eu era casado e que, dada a minha posição, não poderia assumir abertamente esse romance.
– Mas você disse que me amava e que cuidaria de mim…
– E não venho fazendo isso? Por acaso não providenciei um teto para você, não mando levar-lhe alimento a cada semana?
– Deu-me apenas uma tosca choupana perdida no meio da floresta. As roupas já não me servem, e a comida mais parece restos da sua mesa. E você não vem mais ver, não se importa com bebê, que sequer possui enxoval. Afinal, você é o pai, tem responsabilidades. Se não quiser assumi-las por bem, serei obrigada a tomar minhas próprias providências. Estou certa de que o bispo…
O homem, visivelmente enfurecido, desferiu-lhe sonoro tapa no rosto e gritou, enquanto a vermelhidão se alastrava pela pálida face da menina:
– Meu filho? Como ousa desafiar-me, a mim, um conde?
A moça, chorando copiosamente, retrucou, entre humilde e receosa:
– Perdoe-me. É o desespero que me faz agir assim. Jamais me atreveria a levantar qualquer suspeita sobre seu nobre caráter. Mas, o que fazer? Que fazer com a criança, uma criança que sequer desejei? Não tenho recursos, não tenho nada nem ninguém, apenas você. Por favor, não me abandone!
A mulher estava descontrolada e começou a elevar a voz, entrecortada por soluços sentidos e desesperados.
– Acalme-se, pelo amor de Deus! Encontrarei uma solução – durante alguns segundos quedou-se silente, até que, com um sorriso indecifrável nos lábios, finalizou: – Não se preocupe. Dentro de dois dias, à meia-noite, volte aqui e tudo se resolverá.
– Como? O que pretende fazer?
– Deixe tudo por minha conta. As coisas se arranjarão da melhor forma possível. Ou será que não confia em mim?
– Confio cegamente. Apenas tenho receio…
– Pois não receie. Eu estou aqui e vou protegê-la. Agora vá e deixe-me só. Preciso organizar meus pensamentos e tomar algumas providências.
Decorridos os dois dias, a mulher retornou à hora aprazada, sozinha e cheia de esperanças.
– Venha – ordenou o conde sem delongas.
Saíram ocultos do castelo e tomaram um coche desprovido de qualquer ornamento, que os aguardava escondido entre as árvores. Seguiram em silêncio, encobertos pelas sombras, e pararam cerca de uma hora depois às portas de imensa e sóbria abadia. Ainda sem dizer palavra, penetraram por uma passagem secreta, acompanhados de uma freira, e foram descendo até os subterrâneos do convento. A freira os deixou ao chegarem a uma câmara pouco iluminada, com paredes de pedra, que mais parecia uma masmorra, onde se via, ao centro, uma espécie de maca coberta por um lençol encardido e grosseiro. No interior, a abadessa já os esperava, acompanhada de um homem de aspecto grave e pouco amistoso, que não escondia o nervosismo.
– Meu caro conde – disse o homem –, já não era sem tempo. Vamos depressa com isso, já estou impaciente.
– Calma – respondeu ele, segurando-o pelo braço. – Sei ser generoso com os amigos, principalmente com aqueles que me servem fielmente.
A moça, sem entender o que se passava, olhou ao seu redor e perguntou:
– O que é isso, meu senhor? Quem são essas pessoas? Que viemos fazer aqui?
– Sossegue, minha querida – falou carinhosamente a abadessa. – Está entre amigos. Siga-me.
A abadessa conduziu a moça até a cama, fazendo-a deitar-se de costas. De forma suave e apaziguadora, acariciou seus cabelos, transmitindo-lhe palavras de conforto e segurança.
– Não se aflija. Tudo vai acabar bem. Verá que, ao terminarmos, poderá continuar seguindo com sua vida como se nada tivesse acontecido. Esquecerá o ocorrido e poderá até mesmo, casar. Quem sabe? Ou, se preferir, poderá ficar aqui e dedicar sua vida a Deus.
– Mas… – gaguejou a moça – não compreendo. Terminar o quê? Esquecer o quê? Por favor, meu senhor, explique-me o que está acontecendo.
– Silêncio! – ordenou o conde. – Basta de choramingos e perguntas. Não percebe o que está para acontecer? Este homem é um cirurgião, vai examiná-la e libertar-nos, a você e a mim, desse fardo indesejável. Essa criança não pode nascer. Será a minha ruína. Não se preocupe. O médico é experiente e, depois, você será regiamente recompensada.
A moça silenciou. Talvez ele tivesse razão. Para que continuar com aquilo, deixar vir ao mundo uma criança que não desejava, enterrar sua vida e a de seu senhor no lodaçal da vergonha e do escândalo? Além do mais, ele prometera recompensá-la. Com o dinheiro poderia ir-se embora dali, esquecer aquilo tudo e recomeçar em algum lugar.
O médico iniciou a trabalhar nela. Afastou-lhe as pernas sem qualquer constrangimento e introduziu os dedos em sua vagina. Após alguns segundos, em que a moça não conseguia esconder sua vergonha, retirou a mão e chamou o conde a um canto:– Creio que não é aconselhável tentarmos retirar o feto. A gravidez já se encontra muito adiantada, e há riscos para a mãe.
– Não importa – replicou o conde. – Livre-me dessa criança de qualquer jeito. Se a mãe não resistir, bem… Será uma pena, mas nada poderemos fazer. Além disso, ela é ainda muito jovem, e há de possuir forças para suportar a dor e as consequências.
A solução foi prosseguir com a cirurgia que, a essa altura, seria mesmo um parto, seguido da morte do bebê. Manipulando instrumentos cirúrgicos precários, o médico tentou puxar, para fora do útero da mãe, o feto de quase seis meses de gestação. Foi um fracasso. Inconscientemente apegado ao instinto de sobrevivência, o bebê fugia aos aparelhos, até que os instrumentos conseguiram fixar-se em seu corpinho e o cirurgião o puxou, retirando-lhe o tronco sem um dos membros superiores. A criança veio ao mundo ainda com vida e estertorou por alguns poucos segundos, morrendo logo em seguida e deixando no útero da mãe o bracinho decepado. Tamanha violência desencadeou séria hemorragia, e o médico, atarantado, não sabia o que fazer para extrair o braço da criança do ventre materno.
– Pelo amor de Deus! – implorou ela, sentindo dores terríveis. – Salvem-me! Não quero morrer, tenho medo! Salvem-me! Salvem-me!
– Jesus… – evocou a abadessa, coberta de pavor.
Banhada em sangue, a moça urrava feito animal ferido, prestes a morrer, e os presentes, assustados, entraram em pânico, vendo próximo o fim da paciente. Esta, transtornada pela dor, pela revolta e pelo ódio, passou a acusar o conde, a abadessa e o cirurgião de assassinos, julgando haver, entre eles, um complô para matá-la e à criança. Os três, apavorados, permaneceram imóveis, assistindo paralisados a vida da moça se esvaindo aos borbotões, sem que nada pudessem fazer. E ela, ainda em um último alento, juntou forças e bradou, fazendo estremecer os presentes ante a carga de ódio contida em suas palavras:
– Malditos sejam, todos vocês que tramaram, covardemente, o meu fim e o de meu filho. Eu juro que não encontrareis sossego enquanto viverem, pois minha alma, que julgo eterna, não descansará enquanto não concluir a terrível vingança que tramarei contra vocês. Que os demônios do inferno os amaldiçoem a todos! E que o meu ódio, bem como o do meu filho, recaia sobre as suas consciências, trazendo para suas vidas somente doenças, misérias e infelicidades, por séculos e séculos à frente…
E assim, levando em seu coração o ódio desmesurado e o desejo de vingança, cerrou os olhos para sempre, deixando os três figurantes entre atônitos e confusos, cada qual remoendo em suas consciências os fatos ocorridos naquela noite.
Para a abadessa, acostumada a ceder os subterrâneos do convento para aqueles eventos, as palavras da moribunda soaram como uma maldição. Já havia presenciado muitos abortos e condoeu-se do desespero daquela moça, quase menina, arrependendo-se de haver compactuado, tantas vezes, com aquela mortandade infantil, em troca dos favores que os nobres, tão gentilmente, lhe concediam.
Para o cirurgião, que julgava apenas exercer o seu ofício, aquelas palavras o fizeram refletir sobre o valor da vida, e uma pontinha de arrependimento assomou em seu íntimo. A ambição desenfreada, contudo, suplantou o alerta da consciência, e ele eximiu-se de qualquer responsabilidade sob o argumento de que fora apenas um instrumento a serviço do conde, a quem alertara sobre os riscos daquela operação. Ele sim, fora o verdadeiro e único responsável pelo falecimento da moça.
Para o conde, as palavras daquela que um dia tomara como amante o assustaram num primeiro momento, levando-o a temer ser assombrado por ela ou perseguido por algum tipo de maldição. No entanto, depois de algum tempo, a vida retomou a normalidade, e ele não mais se preocupou com a moça, sentindo-se até mesmo aliviado por livrar-se daquele estorvo.
A jovem, por sua vez, perdida na treva de mundos inferiores, consorciou-se a espíritos ignorantes e presos à ilusão do mal, alimentando em seu coração o ódio e o desejo de vingança, não só pelo conde, o médico e a abadessa, mas também pelo pequeno abortado. Até que a vida trouxe novas oportunidades, e outra jornada se iniciou…
Veja como era a capa anterior:
Quer conhecer o começo da edição anterior?
Prólogo
Fazia frio, muito frio. Contra a vontade do vento, dobrou a esquina, tentando ocultar as faces no manto que, teimosamente, insistia em ceder passagem à neve que enregelava seus músculos. Silenciosamente adentrou o castelo, penetrando por uma passagem lateral, quase que invisível por detrás dos arbustos de hera. Com passos rápidos e assustados, seguiu pelos corredores escuros, buscando trilhar os recantos mais isolados e secretos do castelo, evitando o encontro com pessoas indesejáveis.
De repente, estacou ante uma enorme porta de pedra, apurou os ouvidos e escutou. Silêncio. Vagarosamente, empurrou a pesada porta e penetrou no aposento, do outro lado da parede, fechando-a em seguida, escondendo a passagem secreta por detrás de pesada estante de livros. Caminhando cautelosamente, dirigiu-se para uma enorme mesa de cedro, parando em frente a um homem, jovem ainda que, absorto na leitura, a princípio não percebeu sua entrada. Subitamente, como que movido mais por intuição do que pela audição, largou a leitura e levantou os olhos negros para ela que, lívida, o fitava cheia de admiração.
– O que estás fazendo aqui? – perguntou. – Já não te disse que não viesses aqui sem que eu te chamasse? Alguém te viu entrar?
Dito isso, levantou-se apressado, indo em direção à porta do gabinete, para averiguar se alguém havia notado a sua presença. Contudo, dado o adiantado da hora, todos se encontravam já dormindo, à exceção dele mesmo, entretido que estava na leitura.
– Não, meu senhor. Ninguém me viu entrar. A neve cai impiedosa, e ninguém se atreve a sair com um tempo destes.
– Que vieste, então, fazer aqui?
– Pedir-te auxílio – disse enquanto afastava o manto, descobrindo o ventre, já bem avolumado. – Não posso mais continuar assim. Não tenho recursos, sequer roupas para vestir o pequeno. Que fazer? Prometeste-me ajuda, mas até agora nada fizeste por mim, por nós, por nosso filho.
O homem, bastante irritado, pôs-se a esbravejar, fazendo com que a moça se encolhesse e desatasse num choro carregado de ressentimento.
– Não podes tratar-me assim – queixou-se ela. – Nada fiz para merecer tamanho desprezo, senão amar-te. Por ti abandonei minha família, meu lar. Meu pai virou-me as costas, envergonhado por ver a filha desonrada, sem marido. Acusa-me de mundana, não me quer ver.
Receoso, o homem indagou, tentando aparentar um carinho que não possuía.
– Disseste a ele quem é o pai da criança?
– Não. Fiz como me pediste e nada revelei a ninguém, embora ele desconfie de ti… Francamente, não sei por quanto tempo poderei guardar este segredo – olhou para ele com uma certa malícia, deixando entrever que não estava disposta a suportar, sozinha, tão pesado fardo. – Até agora nada disse a ninguém. Contudo, se não me auxilias, como farei para viver? Já disse que meu pai me voltou as costas, expulsou-me de casa.
O homem, certo de que aquela mulher, cedo ou tarde, acabaria por levar a todos o conhecimento da verdade, dissimulou a voz e retrucou:
– Quando me conheceste, já sabias que eu era casado e que, dada a minha posição, não poderia assumir abertamente meu romance contigo.
– Mas disseste que me amavas e que cuidarias de mim.
– E não venho fazendo isso? Por acaso não providenciei um teto para ti, não te mando levar alimento a cada semana?
– Sim, mas é apenas uma tosca choupana perdida no meio da floresta, onde as paredes finas não impedem a entrada do frio. Não possui lareira, e as acomodações não oferecem um mínimo de conforto. Ademais, as roupas já não me servem, meu corpo se transforma, estou engordando cada vez mais, e não há agasalho que me proteja do vento. A alimentação que me envias é escassa, mais se assemelhando a restos de tua mesa do que a provisões adquiridas para mim. Além disso, não me vens mais ver, não te importas com minha saúde nem com a do bebê que espero, que sequer possui enxoval. Afinal, és o pai, tens responsabilidades para com ele. Se não quiseres assumi-las por bem, serei obrigada a tomar minhas próprias providências. Estou certa de que o bispo…
O homem, visivelmente enfurecido, desferiu-lhe sonoro tapa no rosto e gritou, enquanto a vermelhidão se alastrava pela pálida face da menina:
– Meu filho? Como ousas desafiar assim um conde, cuja reputação ilibada não possui mácula alguma em seu passado?
A moça, agora chorando copiosamente, dizia humilde e receosa:
– Perdoa-me, meu senhor. É o desespero que me faz agir assim. Jamais me atreveria a levantar qualquer suspeita sobre teu nobre caráter. Mas, o que fazer? Que fazer com a criança, uma criança que sequer desejei? Não tenho recursos, não tenho nada nem ninguém, apenas a ti. Por favor, não me abandones, não me abandones!
A mulher, já descontrolada, começava a elevar a voz, entrecortada por soluços sentidos e desesperados.
– Acalma-te, pelo amor de Deus! – suplicou ele. – Encontrarei uma solução. – Durante alguns segundos quedou-se silente, pensando na maneira mais fácil de resolver aquela situação sem provocar escândalos. – Escuta com atenção. Dentro de dois dias, à meia-noite, retorna sozinha e tudo se resolverá.
– Mas como? O que farás?
– Não te preocupes. Tudo se arranjará da melhor forma possível. Ou não confias em mim e no meu amor?
– Confio, meu senhor, cegamente. Apenas tenho receio…
– Pois não receies. Eu estou aqui e vou proteger-te. Agora vai e deixa-me só. Preciso organizar meus pensamentos e tomar algumas providências.
Decorridos dois dias, a mulher retornou à hora aprazada, sozinha e cheia de esperanças. Mais uma vez seguiu pelos corredores escuros e ocultos do palácio, indo dar na sala ocupada pelo conde, que já a aguardava ansiosamente.
– Vem – ordenou ele sem delongas.
Fizeram o caminho de volta, saíram do castelo e tomaram um coche desprovido de qualquer ornamento, que os aguardava escondido entre as árvores. Em silêncio, seguiram encobertos pelas sombras, parando cerca de uma hora depois às portas de imensa e sóbria abadia. Ainda sem dizer palavra, penetraram por uma passagem secreta, acompanhados de uma freira, indo dar nos subterrâneos do convento. A freira os deixou ao chegarem a uma câmara pouco iluminada, com paredes de pedra, que mais parecia uma masmorra, onde se via, ao centro, uma espécie de maca coberta por um lençol encardido e grosseiro. No interior, a abadessa já os esperava, acompanhada de um homem de aspecto grave e pouco amistoso, que não escondia o nervosismo.
– Meu caro conde – segredou o homem –, já não era sem tempo. Vamos depressa com isso, já estou impaciente.
– Acalma-te – respondeu ele, segurando-o pelo braço. – Sei ser generoso com os amigos, principalmente com aqueles que me servem fielmente.
A moça, sem entender o que se passava, olhou ao redor e perguntou:
– O que é isso, meu senhor? Quem são essas pessoas? Que viemos fazer aqui?
– Sossega, minha querida – falou carinhosamente a abadessa. – Estás entre amigos. Segue-me.
Assim dizendo, conduziu a moça até a cama, fazendo-a deitar-se de costas. De forma suave e apaziguadora, a abadessa acariciava seus cabelos, transmitindo-lhe palavras de conforto e segurança.
– Não te aflijas. Tudo vai acabar bem. Verás que, ao terminarmos, poderás continuar seguindo com tua vida como se nada tivesse acontecido. Esquecerás o ocorrido e poderás até mesmo, quem sabe, casar? Ou, se preferires, poderás ficar aqui e dedicar tua vida a Deus.
– Mas… – gaguejava a moça – … não compreendo. Terminar o quê? Esquecer o quê? Por favor, meu senhor, explica-me o que está acontecendo.
– Silêncio! – ordenou ele. – Basta de choramingos e perguntas. Não percebes o que está para acontecer? Este homem é um cirurgião, vai examinar-te e libertar-te, a ti e a mim, desse fardo indesejável. Essa criança não pode nascer. Será a minha ruína. Não te preocupes. O médico é experiente e, depois, serás regiamente recompensada.
A moça silenciou. Talvez ele tivesse razão. Para que continuar com aquilo, deixar vir ao mundo uma criança que não desejava, enterrar sua vida e a de seu senhor no lodaçal da vergonha e do escândalo? Além do mais, ele prometera recompensá-la. Com o dinheiro poderia ir-se embora dali, esquecer aquilo tudo e recomeçar.
O médico iniciou a trabalhar nela. Afastou suas pernas sem qualquer constrangimento e introduziu os dedos em sua vagina. Após alguns segundos, em que a moça não conseguia esconder sua vergonha, retirou a mão e chamou o conde a um canto:
– Creio que não é aconselhável tentarmos retirar o feto. A gravidez já se encontra muito adiantada, e há riscos para a mãe.
– Não importa – replicou o conde. – Livra-me dessa criança de qualquer jeito. Se a mãe não resistir, bem… Será uma pena, mas nada poderemos fazer. Além disso, ela é ainda muito jovem e há de possuir forças para suportar a dor e as consequências.
O cirurgião não viu outra solução, senão prosseguir na operação que, a essa altura, já seria mesmo um parto, seguido do assassinato de uma criaturinha inocente. Manipulando instrumentos cirúrgicos precários, tentou puxar o feto para fora do útero da mãe, já todo formado, nos seus quase seis meses de gestação, e dilacerou o seu corpinho, retirando-lhe o tronco sem um dos membros superiores. A criança veio ao mundo ainda com vida mas, estertorando por alguns poucos segundos, logo morreu, deixando no útero da mulher o bracinho decepado. Tamanha violência ocasionou séria hemorragia na moça, e o médico não sabia como retirar o braço da criança do ventre materno, causando-lhe dores horríveis.
– Pelo amor de Deus! – implorava. – Salvai-me! Não quero morrer, tenho medo! Salvai-me! Salvai-me!
– Jesus… – evocou a abadessa coberta de pavor.
A moça, banhada em sangue, urrava feito animal ferido, prestes a morrer, e os presentes, assustados, entraram em pânico, vendo próximo o fim da paciente. Esta, já agora transtornada pela dor, pela revolta e pelo ódio, passou a acusar o conde, a abadessa e o cirurgião de assassinos, julgando haver, entre eles, um complô para matá-la e à criança. Os três, apavorados, permaneceram imóveis, assistindo paralisados a vida da moça se esvaindo aos borbotões, sem que nada pudessem fazer. Esta, ainda em um último alento, juntou forças e bradou, fazendo estremecer os presentes ante a carga de ódio contida em suas palavras:
– Malditos sejais, vós que tramastes, covardemente, o meu fim e o de meu filho. Eu juro que não encontrareis sossego enquanto viverdes, pois que minha alma, que julgo eterna, não descansará enquanto não concluir a terrível vingança que tramarei contra vós. Que os demônios do inferno vos amaldiçoem a todos! E que o meu ódio, bem como o do meu filho, recaia sobre as vossas consciências, trazendo para vossas vidas somente doenças, misérias e infelicidades, por séculos e séculos à frente…
E assim, levando em seu coração o ódio desmesurado e o desejo de vingança, cerrou os olhos para sempre, deixando os três figurantes entre atônitos e confusos, cada qual remoendo em seus pensamentos os fatos ocorridos naquela noite.
Para a abadessa, acostumada que estava a ceder os subterrâneos do convento para aqueles eventos, as palavras da moribunda soaram como uma maldição, e o seu coração, que muitos abortos já presenciara, condoeu-se do desespero daquela moça, quase menina, e se arrependeu de haver compactuado, tantas vezes, com aquela mortandade infantil em troca dos favores que os nobres, tão gentilmente, lhe concediam.
Para o cirurgião, que apenas exercia o seu ofício, aquelas palavras o fizeram refletir sobre o valor da vida, e uma pontinha de arrependimento assomou em seu íntimo. Mas a ambição desenfreada suplantou o alerta da consciência, fazendo com que se julgasse apenas um instrumento, o que o eximia de qualquer responsabilidade pelo ocorrido. Não era culpa sua se, lamentavelmente, nem sempre as coisas saíam conforme o desejado, já que cumprira com o seu dever advertindo o conde dos riscos que correria a jovem com aquela operação. Ele sim, fora o verdadeiro e único responsável pelo falecimento da moça.
Para o conde, contudo, as palavras daquela que um dia tomara como amante o assustaram num primeiro momento, temendo que passasse a ser vítima, dali para a frente, de algum tipo de assombração. No entanto, depois de algum tempo, as coisas retornaram à normalidade, e ele não mais se preocupou com ela, sentindo-se até mesmo feliz por livrar-se daquele estorvo.
Quanto à jovem, perdida que ficara nas trevas de mundos inferiores, consorciou-se a espíritos odientos e perversos, alimentando em seu coração o ódio, não só pelo conde, o médico e a abadessa, que se haviam juntado para roubar-lhe a juventude e a vida, mas também pelo pequeno abortado, que sequer chegara a conhecer, atribuindo-lhe a responsabilidade por havê-la atirado na injusta e imerecida situação que fora a causa de toda a sua desgraça…